Que tal agora na perspectiva de Roberto Campos?
Meu caro leitor, permita-me, com a licença poética e a acidez peculiar que me caracterizam, transmutar este relato pitoresco da história britânica em uma alegoria saborosa para digerirmos as idiossincrasias tupiniquins.
A ascensão de Eduardo VII ao trono inglês, após o longo e moralista reinado de sua genitora, a Rainha Vitória – essa figura paradoxal que vergou o Império Chinês ao vício do ópio, mas empalidecia diante de qualquer menção ao prazer carnal, a ponto de lançar um pobre Oscar Wilde às masmorras por seus apetites – marca a transição para uma era, digamos, menos hipócrita. Ou, dependendo do seu grau de puritanismo, mais escandalosa.
Enquanto a era vitoriana ostentava a elegância formal do white-tie nos serões londrinos – um ritual de fraque completo, camisa engomada e gravata borboleta impecável, como bem ilustra a interpretação de Rupert Everett em “O Marido Ideal” –, o reinado de Eduardo VII exalava um perfume de libertinagem. Suas inúmeras amantes, catalogadas com a precisão de um inventário real na Wikipedia, e sua predileção pelos jogos de azar, que lhe renderam um escândalo de proporções consideráveis, pintam um quadro de uma monarquia mais terrena, digamos assim.
Mas não nos percamos nos labirintos da era eduardiana. O fulcro da nossa digressão reside em um imbróglio contratual que floresceu à sombra da sua coroação, um evento que, para além do seu significado histórico, legou à ciência jurídica um marco indelével: os Coronation Cases.
Para que não paire nenhuma névoa de incompreensão, a locação de imóveis por temporada não é invenção da internet. AirBnB e Booking.com são apenas a roupagem digital de uma prática ancestral, tão antiga quanto a necessidade humana de um pouso temporário além da residência habitual. Quem não evoca os anúncios nostálgicos do “Primeiramão”, oferecendo refúgios litorâneos nos verões escaldantes ou aconchegantes recantos serranos nos invernos rigorosos? O povo sempre buscou, com pragmatismo, alternativas mais espaçosas ou economicamente vantajosas aos hotéis convencionais.
A Londres de 1902 não era imune a essa dinâmica. A coroação de Eduardo VII, inicialmente marcada para junho, deflagrou uma febre de locações por temporada. As famílias mais abastadas da capital britânica abriram as portas de seus lares bem localizados, transformando janelas e sacadas em camarotes privilegiados para o grandioso espetáculo real.
Contudo, o destino, sempre ele a pregar peças, impôs um revés inesperado. Uma infecção abdominal fulminante acometeu o monarca, adiando a coroação para agosto. O adiamento, como era de se esperar, gerou um pandemônio de prejuízos. Locatários, ávidos por testemunhar a pompa real, haviam desembolsado somas consideráveis por acomodações que se tornaram inúteis na data original. Paralelamente, os proprietários, seguindo o protocolo social da época – que ditava a posse de um refúgio campestre, como o de Winston Churchill em Chartwell, para as elites londrinas –, haviam se deslocado para o interior, arcando com custos adicionais para ceder seus imóveis.
O prejuízo, portanto, foi generalizado. Tanto para aqueles que pagaram pelo privilégio de uma vista frustrada, quanto para os que se privaram de seus lares e de potenciais novas locações no período original.
E eis que surge a questão fulcral, com ecos que ressoam até os nossos dias: os locatários deveriam arcar com o aluguel, mesmo diante da frustração do propósito contratual – assistir à coroação? Ou os locadores deveriam reter os valores, como uma forma de mitigar seus próprios prejuízos? Quem detinha a razão nesse intrincado nó negocial?
Essa miríade de litígios, surpreendentemente, catapultou a teoria da “frustração de propósito” para o centro do palco do Direito Contratual. Uma doutrina que preconiza a rescisão do contrato quando o objetivo primordial que motivou a avença se torna inatingível, mesmo que nenhuma das partes tenha concorrido culposamente para tal.
Quem diria que um evento histórico tão distante, com seus reis amantes e costumes vitorianos, legaria uma contribuição tão seminal para a ciência jurídica? Os Coronation Cases, meus caros, são um lembrete eloquente de que mesmo os eventos mais singulares podem iluminar os princípios universais que regem as relações contratuais. Uma lanterna na popa da história, a iluminar os meandros da justiça negocial.