O debate sobre a força probante da matrícula

Quando você compra um imóvel, mesmo que faça uma compra fora das formalidades da lei, o que você tem de ver primeiro? A matrícula.

A existência do nome do Fulano na matrícula dá pela menos uma idéia de que esta pessoa nela indicada pelo menos foi proprietária por um tempo. Isso é suficiente? Não. Existem. inúmeros outros indícios documentais a serem observados. Pode ser um contrato de gaveta, um inventário de direitos, uma arrematação ou simplesmente o proprietário passou as chaves para outro para se livrar logo do imóvel. 

No entanto, o fato de haver um nome na matrícula tem o nome de alguém significa que a existência do nome desta pessoa serve como prova da propriedade desta pessoa. e o que chamamos força probante dos livros: a capacidade de a matrícula demonstrar a existência de direitos das pessoas a um direito real. 

Falamos de livros aqui porque, para cada matrícula, existe um banco de dados: o Livro n° 2, o Registro Geral, dentro de cada cartório de Registro de Imóveis. 

Agora, explicado o conceito de força probante dos livros, vamos agora entender a origem histórica: o Código Civil de 1916, que, finalmente, criou o Registro de Imóveis mais ou menos na forma como conhecemos hoje e definiu a força probante dos livros. 

Assim dizia o artigo 530 do Código Civil de 1916:

Art. 530. Adquire-se a propriedade imóvel:

I – Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel.

Assim dizia o artigo 676:

Art. 676. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem depois da transcrição ou da inscrição, no registro de imóveis, dos referidos títulos (arts. 530, n I, e 856), salvo os casos expressos neste Código.

E o mais controverso de todos, o artigo 859:

Art. 859. Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.

Ou seja, quando Fulano está na matrícula, pode-se atestar com certeza absoluta que ele é o dono, pode-se presumir que ele é o dono ou o fato de ele estar no documento não diz nada?

No Direito, temos um instituto jurídico denominado presunção, ou seja, o pressuposto que a informação existente em determinados documentos é verdadeira. Temos a presunção absoluta, ou seja, de que a informação que está em certos contextos é verdadeira e não admite prova em contrário. Temos também a presunção relativa, na qual a informação é presumida verdadeira a não ser que não haja prova em contrário. 

Ou seja, caso seja possível a presunção absoluta de propriedade com base na informação do registro, temos plena segurança do registro. Bastaria tirar uma certidão de determinado imóvel e dizer: está em nome de fulano. Se temos presunção relativa, então teríamos que a certidão no nome de Fulano é presumida verdadeira, porém, se houver outros documentos e meios de prova, poderíamos até mesmo contrariar a informação da propriedade, uma vez que se admite prova em contrário. 

O artigo 859 do Código Civil de 1916 era copiado do artigos 891 e 892 do Código Civil alemão, com a seguinte redação:

art. 891 (1): Se um direito tiver sido inscrito no Registo Predial para uma pessoa, presume-se que a pessoa tem direito a esse direito.

art 891 (2): Se um direito inscrito no Registo Predial for suprimido, presume-se que o direito não existe.

art 892 (1) Em benefício da pessoa que adquire um direito sobre um terreno ou um direito sobre tal direito por meio de transação legal, presume-se que o conteúdo do Registro de Imóveis está correto, a menos que seja registrada uma objeção à sua exatidão ou que a inexatidão seja do conhecimento do adquirente. Quando o titular do direito estiver limitado ao benefício de uma pessoa específica em sua disposição sobre um direito inscrito no Registro de Imóveis, a restrição só será efetiva em relação ao adquirente se for evidente no Registro de Imóveis ou do conhecimento do adquirente.

Neste sentido, com a edição do Código Civil de 1916, desenvolveu-se um longo debate doutrinário sobre a força probante dos livos da matrícula desde as discussões que durou até 1940:

Tivemos duas correntes em confronto: a da fé pública registral, que dava a presunção absoluta dos livros, e a da presunção relativa, que previa a presunção relativa. Vamos agora ver os elementos principais deste debate.

A corrente da fé pública registral teve como autores Lysippo Garcia, Clóvis Beviláqua, Arnoldo Medeiros da Fonseca, Serpa Lopes e Philadelpho Azevedo defendiam que o Código de 1916, apesar de suas imperfeições, adotou o Sistema Germânico de publicidade imobiliária, conferindo ao registro a força probante. A essência dessa posição era que a transcrição não era apenas um ato de publicidade, mas um modo de adquirir a propriedade.

Se o fato de determinada pessoa física ou jurídica está anotada no livros de registro atribui a propriedade, então, supostamente, haveria presunção absoluta sem discussão. 

Soriano Neto, Virgílio Sá Pereira, Joaquim Guedes Correia Gondim Filho e Fernando Euler Bueno argumentavam que o Código Civil de 1916 não implementou a fé pública registral, mas sim a manteve como uma tradição solene e causal.

A principal razão era a ausência de um artigo no Código brasileiro equivalente ao  § 892 do Código Civil Alemão, que é o que realmente consagra a fé pública registral. O artigo 859 do Código de 1916, por si só, apenas estabeleceria uma presunção processual iuris tantum (que admite prova em contrário), regulando o ônus da prova, mas não a fé pública.

Além disso, o direito brasileiro não possuía um cadastro imobiliário completo, que seria um requisito fundamental para a segurança e eficácia de um sistema de fé pública.

A implantação da fé pública, sem um sistema formal robusto, transferiria a insegurança dos terceiros para os proprietários, que poderiam perder seus bens sem culpa e sem direito à indenização.

O Código de 1916 manteve a natureza causal da tradição: o registro dependia da validade do título de origem para ser eficaz. A existência de institutos como a usucapião ordinária e a evicção no Código de 1916 era vista como prova de que a fé pública não existia plenamente, pois seriam figuras inúteis se o registro já purgasse o domínio. 

Mesmo sem um cadastro imobiliário completo, a publicidade, a legalidade na análise dos títulos pelo oficial de registro e a presunção de veracidade já seriam suficientes para caracterizar o sistema como germânico. 

A impossibilidade de se atingir um sistema perfeito não deveria ser um obstáculo para se extrair a máxima eficácia do artigo 859 em prol da segurança das transações, nesta forma de pensar.

No final das contas, venceu a teoria híbrida. 

Os defensores da tese absoluta defendiam que haveria presunção absoluta e inclusive chegaram a subverter o conceito alemão, partindo da idéia que os livros não permitiriam prova em contrário.

A observação de que haveria presunção sem prova em contrário na Alemanha contraria a realidade, como fica claro em quem leu os artigos 891 e 892 do Código Civil alemão como já mostrado. Foi uma interpretação exagerada.

Por outro lado, os defensores da presunção relativa achavam que o documento do registrador não serviriam para nada a não ser como anexo numa ação judicial ou processo administrativo e não serviria como ele é utilizado hoje. 

Venceu a teoria híbrida, em que as certidões fornecidas pelos livros servem de informação presumida verdadeira para todos os fins, mas admitindo prova em contrário. 

Esse debate parece estéril para a realidade brasileira e mais ainda quando temos em consideração que se trata de uma realidade de 100 anos atrás. Se já é complicado com o sistema brasileiro de 2025, em que metade dos imóveis não possuem matrícula ou estão irregulares, imagina isso em 1920, quando este debate se desenrolou.

A presunção absoluta não somente não existia entre os alemães, seja daquele tempo, seja de hoje, como é inviável no Brasil hoje, como também, caso não haja força probante para os livros, qual a sua utilidade prática? Manter um imóvel documentalmente regular custa em torno de 10% de uma transação (compra e venda, doação ou herança). A vitória do debate híbrido foi bem-sucedida. 

Embora esse questionamento tenha desaparecido com a Segunda Guerra Mundial, ele voltou à baila com a Lei 13097/15 e com o Novo Código de Processo Civil de 2015. Isso porque assim diz o artigo 54 da Lei 13097/15: 

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: 

I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos no art. 828 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);   

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).  

V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária.    

§ 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

No mesmo sentido, assim diz o artigo 844 do Código de Processo Civil:

Art. 844. Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial.

Temos dois elementos novos: uma situação de presunção absoluta, não por avaliação doutrinária, mas por expressa determinação legal. Por outro lado, temos também o princípio da concentraçaõ dos atos na matrícula. Isso significa presunção absoluta?

Mais uma vez, não.    

Isso porque a ausência de dados na matrícula não impede várias leis que causem a evicção. Por exwemplo, o artigo 185 do Código Tributário Nacional, que prevê que devedores na dívida ativa são presunção (esta, também, absoluta) de fraude continuam em vigor. O ex-sócio continua responsável trabalhista por até 2 anos depois da saída da sociedade (art. 10-A da CLT).

O próprio Direito Registral e Notarial contraria essa idéia com o provimento 188 de 2025, em que, enquanto um título estiver sendo qualificado e registrado, caso venha um mandando determinando a averbação de indisponibilidade (muito comuns, aliás, em execuções trabalhistas), a indisponibilidade impede o registro de um título de transmissão. Ou seja, se João, proprietário, vender sua casa a José por escritura pública de compra e venda, caso João seja executado trabalhista, José pode perder a casa. Se a escritura pública entre João e José já estiver no registrador com a qualificação em andamento, o registro não ocorrerá.

Todas esses situações não estão na matrícula, mas podem levar à perda do imóvel. Não existe, portanto, presunção absoluta das informações apostas nos livros por causa inclusive de leis que estão fora do livro. 

Estes são os meus comentários. E os seus? O que acha?

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