O que ele tem em comum com o Brasil?
Resenha de
Mônica Jardim: De novo, o sistema registral Austríaco
permita-me desvendar os mistérios do sistema registral austríaco, uma teia de leis e dogmas que, acredite, nos serve de espelho, ainda que um tanto distorcido, para as nossas próprias idiossincrasias tupiniquins. Por que diabos devemos nos debruçar sobre algo tão, digamos, germânico? Simples: porque, sem perceber, bebemos dessa fonte desde tempos imemoriais, ou, para ser mais preciso, desde o Código Civil Beviláqua de 1916.
A Viena de 1399: Onde Tudo Começou (e por que nos importa)
Imagine a Viena de 1399, onde já se sussurrava a palavra “Grundbuch” – o nosso bom e velho Registro de Imóveis. Essa prática milenar foi, digamos, “contemporizada” pela Lei de Registros Públicos deles, a Grundbuchgesetz de 1955.
Aqui jaz a primeira conexão surpreendente: em muitos aspectos, o sistema austríaco, ao lado do alemão, é um parente próximo do nosso. Enquanto os alemães, em sua genialidade, ousam, não dispensar a escritura em certas situações, mas dizer que não são constitutivas de direito – num balé jurídico entre “separação” (trennungsprinzip) e “abstração” (abstraktionprinzip) –, nós, brasileiros, e os austríacos, fazemos a boa e velha dupla: escritura (ou inventário) mais registro. E é o registro que faz o direito, num sistema que chamamos de “título e modo”.
Ah, mas não se engane. Copiamos os aspectos dogmáticos e legais com uma fidelidade quase obsessiva. Contudo, a realidade é um balde de água fria: as nossas favelas, os emolumentos que sangram o bolso do cidadão comum, a renda per capita que nos envergonha e a infinidade de contratos de gaveta por aí, tudo isso mostra que o “modelo rígido” austríaco esbarra na nossa caótica, mas vibrante, realidade. Ainda assim, é inegável a relevância das categorias austríacas, já que o Brasil, desde o Beviláqua (nosso Código Civil de 1916), optou pelo sistema germanista dos livros.
O Berço Tabular: De Boêmia à Fé Pública
O verdadeiro embrião dessa saga registral brotou nas terras da Boêmia e Morávia (hoje, República Tcheca), com o Landtafeln. Um sistema público que, desde sempre, exigia a inscrição de todos os atos jurídicos que envolvessem a transmissão ou a constituição de direitos reais sobre imóveis. Pense nele como o ponto de ignição, a estrela-guia que moldou o registro austríaco.
No início, a “tabulação” servia apenas para comprovar o consentimento senhorial – um detalhe charmoso da história. Mas, a partir do século XV, essa inscrição ganhou peso, tornando-se indispensável para a aquisição do direito. E assim, os pilares foram erguidos:
- Princípio da Especialidade: o registro detalhava o imóvel e o negócio com precisão cirúrgica.
- Fé Pública (Vertrauenwürdigkeit): o funcionário controlava o título e o direito, o que se alinha ao nosso princípio da legalidade.
Não foi à toa que o Império Austro-Húngaro investiu pesado na delimitação da propriedade. Leis como as de Fernando II (1627, 1628, 1640) e a Lei Hipotecária de 1794, que introduziu a eficácia constitutiva da inscrição, foram marcos cruciais. Culminou no Código austríaco de 1811 (Allgemeines Bürgeliches Gesetzbuch für das Kaisertum Osterreichs), ainda em vigor, que sacramentou o sistema dos Landtafeln e dos Registros Fundiários, reafirmando a eficácia constitutiva da inscrição (§ 431).
A cereja do bolo: o Landtafeln era para a aristocracia, para os lordes. Para o cidadão comum, havia o Grundbuch. E para os imóveis do Estado, o Stadtbuch. Cada um no seu quadrado.
Os Pilares do Sistema Tabular Austríaco: Rigidez e Nuances
O que faz o sistema austríaco ser tão singular, e por que ele nos intriga?
Resposta: porque são os princípios que seguimos na Lei 6015/73.
- Fólio Real: Pense no imóvel como uma pessoa. O registro é o seu “estado civil”, com uma ficha detalhada, precisa e individualizada.
- Efeito Constitutivo: Nada de “contrato de gaveta” lá. A inscrição no registro é essencial para que um direito real sobre um imóvel nasça, se transmita ou se modifique. Perder a propriedade? Só com o cancelamento do registro.
- Controle de Legalidade: Esqueça a administração pública. Lá, são os juízes que fazem o controle rigoroso dos requisitos formais e, em certa medida, da substância dos títulos.
- Princípio da Continuidade: Uma cadeia perfeita. Nenhum ato é registrado sem um antecedente lógico. É a continuidade, ou trato sucessivo, levada ao extremo. (Ah, mas aqui temos certas “relativizações” que eles não têm, como nos leilões de imóveis).
- Princípio do Consentimento: Para uma nova inscrição, é preciso que o titular anterior dê sua benção, ou melhor, sua intervenção.
- Princípio da Instância: O processo de registro só começa se alguém pedir. A proatividade do cartório é a exceção, não a regra.
- Presunção de Titularidade: O registro cria uma presunção de que o direito existe e pertence ao titular. Mas atenção: essa presunção não é absoluta! Admite prova em contrário, e pode ser contestada judicialmente. Muito mais rigor do que vemos nos nossos tribunais latino-americanos, convenhamos.
- Fé Pública: Há uma proteção robusta ao terceiro de boa-fé que adquire direitos do titular registrado. Essa proteção, embora não imediata, torna-se sólida após a prescrição da ação de cancelamento.
A Anatomia do Grundbuch e Suas Peculiaridades
O livro fundiário, hoje uma base de dados digital, é uma obra de arte da organização:
- Livro Principal (Hauptbuch): Onde os imóveis ganham sua “matrícula”. Cada um com seu capítulo e três fólios:
- Fólio A: Identifica o imóvel e suas metamorfoses.
- Fólio B: Onde a propriedade se manifesta, com o nome do titular e suas limitações.
- Fólio C: Onde se anota os ônus, como hipotecas e servidões – os pesos e contrapesos do imóvel.
- Livro de Documentos (Urkundenbuch): Um baú de tesouros, com as cópias autênticas de todos os títulos que deram origem às inscrições.
E os assentos registrais? Três tipos, conforme o § 8 da GBG:
- Inscrição (Einverleibungen): O registro definitivo, que consagra a aquisição, modificação ou extinção de direitos.
- Pré-inscrição (Vormerkungen): Um registro condicional, um “quase lá” que, uma vez justificado, ganha força retroativa, passando por cima de outros direitos registrados depois.
- Anotação (Anmerkungen): Um aviso, um “olha o que está acontecendo aqui!”. Publicita condições pessoais ou fatos que afetam o poder de disposição do titular, como uma ação judicial pendente.
E o que dizer da Prescrição Extratabular (außerbücherliche Ersitzung)? É a usucapião, meu amigo, a aquisição de um direito real pela posse, mesmo que o registro diga o contrário. Mas lá na Áustria, essa façanha exige nada menos que trinta anos de posse. E mesmo assim, não pode prejudicar terceiros de boa-fé que se basearam no registro. É a prova de que, mesmo num sistema rígido, a usucapião existe, mas é rara como um cometa.
Por fim, a Anotação da Ordem de Prioridade (Anmerkung der Rangordnung) é um show de eficiência. Antes de um negócio, o proprietário pode reservar a prioridade da futura inscrição. Isso garante ao comprador que o direito dele será registrado com a prioridade que foi “anotada”, esmagando qualquer outro registro incompatível que apareça depois. Uma mão na roda que vale por um ano.
Em suma, temos diante de nós um sistema de rigidez exemplar, onde o “contrato de gaveta” é uma aberração, onde os livros têm um peso probante inquestionável, e onde a usucapião é um unicórnio, algo que raramente se vê.
E então, caro leitor, o que acharam dessa viagem pelo Registro de Imóveis austríaco? Deixo a bola com vocês, e aguardo os seus comentários.
Então, o que acharam? Espero seus comentários.
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