Vamos botar uma marchinha antiga de Carnaval de um tempo que acho que ninguém se lembra mais.
Conheçam Daqui não Saio, Daqui Ninguém me Tira.
A marchinha, lançada no Carnaval de 1949 por Paquito e Romeu Gentil, era cantada pelos Vocalistas Tropicais. Narrava a história de uma família com quatro filhos para criar, que pagava aluguel e cujo dono da casa queria retomar o imóvel, supostamente para morar. Para isso, exigia que o inquilino pagasse um valor ‘por fora’ do contrato, no clássico ‘jeitinho brasileiro.
Assim era a transcrição da marchinha:
“Daqui Não Saio, Daqui Ninguém Me Tira”
Daqui não saio, daqui ninguém me tira Daqui não saio, daqui ninguém me tira Onde é que eu vou morar? O senhor tem paciência de esperar Ainda mais com quatro “fio” Onde é que eu vou morar?
Sei que o senhor tem razão Pra querer a casa pra morar Mas onde eu vou ficar? No mundo ninguém perde por esperar Ainda diz por aí Que a vida vai melhorar
Daqui não saio, daqui ninguém me tira Daqui não saio, daqui ninguém me tira Onde é que eu vou morar? O senhor tem paciência de esperar Ainda mais com quatro “fio” Onde é que eu vou morar?
O que a geração nova não se lembra é que, antes da superliberalização econômica de Fernando Collor, a locação residencial era extremamente regulamentada e restritiva.
Amigo leitor, prepare-se para um mergulho nas profundezas da burocracia estatal brasileira. Para os mais jovens, para a geração que não experimentou a praga da hiperinflação e o delírio legislativo, a história que contarei soará como um pesadelo kafkiano. Mas para os que viveram sob o jugo do estatismo populista, a verdade é mais cruel do que qualquer ficção: a locação residencial, antes da (bendita) liberalização do Collor, era um campo minado, uma aberração legislativa que transformava a vida de inquilinos e proprietários em um verdadeiro inferno na Terra.
A Lei 8.245/91: Um Raríssimo Respiro de Sanidade no Caos Jurídico Nacional
O que temos hoje, a Lei 8.245/91, é, para os padrões brasileiros, uma ode à razoabilidade. Ela permite a livre fixação do preço do aluguel no momento da contratação – um sopro de mercado, um vislumbre de que o preço, pasmem, pode seguir a realidade! Permite reajustes dentro de um índice inflacionário (o legislador optou por 30 meses de validade). A partir daí, a manutenção do contrato vira uma faculdade das partes. O locador pode exercer a denúncia vazia, e o locatário pode desocupar o imóvel sem multas leoninas.
Percebem a beleza da simplicidade? Temos aqui um grau de liberdade para as partes que, em outros tempos, seria visto como heresia. O aspecto protetivo da legislação locatícia é limitado ao essencial, ao absolutamente inadiável: estabilidade contratual por um prazo razoável, para que a locação não seja uma montanha-russa de preços e para que o inquilino não vire um cigano forçado por cada capricho do mercado. É um equilíbrio tênue entre liberdade e proteção, um raro lampejo de bom senso.
Temos aqui, portanto, bastante liberdade para as partes, e o aspecto protetivo da legislação locatícia é limitado ao absolutamente essencial: estabilidade das condições contratuais durante um prazo limitado, a fim de que a locação não tenha oscilações súbitas de valor durante a vigência, garantindo ao inquilino estabilidade na casa onde vai morar e evitando mudanças muito frequentes de endereço, que são onerosas, além de prevenir mudanças desfavoráveis súbitas nas condições contratuais durante o prazo de vigência.
Podemos classificar essas regras legais como um equilíbrio entre liberdade contratual e proteção. Entende-se que o locatário está em posição mais precária em virtude de sua situação econômica, do fato de que sofre custo alto com o rompimento contratual (que é a mudança de imóvel) e de que tem uma situação de maior submissão, uma vez que sofrerá de modo mais grave qualquer consequência de um aumento súbito da locação ou de um agravamento das condições contratuais durante a vigência do mesmo.
Ativos do mercado financeiro sofrem oscilação de preço segundo a segundo (alguns muito agressivamente, veja o que acontece com o mercado de futuros ou de opções) e podem subir ou cair muito rapidamente e se entende que o mercado locatício, embora esteja sujeito à oferta e demanda, não pode passar por essas mudanças radicais. Mesmo porque, devido ao custo de uma mudança, é muito fácil o locador apenas aplicar os aumentos e não incluir as quedas, uma vez que, para não ter de se submeter, a única opção disponível ao locatário é a mais dispendiosa: a mudança. Isso o obrigaria a se mudar várias vezes durante um ano.
A Falsa Premissa da “Posição Precária”: Como a Demagogia Estrangulou o Mercado
A premissa, sempre ressaltada pelos arautos do dirigismo, é que o locatário está em posição ‘mais precária’. Vítima de custos altos com a mudança, “submetido” ao locador, sujeito a aumentos súbitos. Uma narrativa que, embora possua um fundo de verdade em casos isolados, serve de pretexto para a intervenção estatal mais contraproducente.
Ora, se ativos do mercado financeiro, como futuros e opções, sofrem oscilações segundo a segundo – subindo e caindo de forma agressiva – é claro que o mercado locatício não pode ser refém dessa mesma volatilidade. O custo de uma mudança é real e oneroso. A lógica é que o locador poderia, impunemente, impor apenas os aumentos, ignorando as quedas, já que a única “opção” do locatário seria a dolorosa mudança. Sim, há um risco. Mas essa é a desculpa perfeita para a estupidez regulatória que historicamente assolou o Brasil.
A Era das Trevas: O Inferno Regulatório do Século XX
Ao longo do século XX, a regra foi uma proteção exagerada que, em vez de proteger, infernizava a vida de todos. Proibições de encerramento contratual, limitações extremas a despejos e, a cereja do bolo da sandice, a proibição de correções ou o subfaturamento destas em momentos de inflação galopante.
Isso tudo, meus caros, era fruto de uma politização extrema dos aluguéis. A retórica do antigo PTB de João Goulart, do Brizola e seus asseclas – um peronismo argentino em miniatura, transposto para o Brasil – demonizava os senhorios. Na visão distorcida desses demagogos, os proprietários de imóveis eram vilões que deveriam ser “vingados” por oferecer locações em valores “elevados” e por colocar a “família do trabalhador” em situação “precária”.
Não vou aqui entediar os leitores com os detalhes nauseabundos das leis de locação anteriores a 1991. Basta dizer que, antes do regime militar, não havia sequer correção monetária dos aluguéis. E um esquerdista qualquer discursaria que o trabalhador ficaria “desprotegido” se não fosse a censura, o pau de arara, o arame na uretra e o choque elétrico. A retórica era tão insana que justificava qualquer absurdo em nome da “proteção” do povo.
O Inferno na Terra: A Vida sob o Protecionismo Delirante
Agora, vamos ao ponto principal, o cerne da questão: o que era viver sob esse protecionismo exagerado, sob essa demagogia tresloucada, sob a desculpa esfarrapada de que isso protegeria o trabalhador? A resposta é clara, cristalina e revoltante: o inferno na Terra. Não sei qual a religião do leitor, mas quem não tinha casa própria pagava todos os seus pecados em vida.
E o mais irônico é que isso acontecia durante os Anos Dourados do Brasil. Sim, aquele tempo em que o país crescia furiosamente, disputando com o Japão a liderança em crescimento econômico no século XX. Um tempo em que mulheres não tinham empregos profissionais (ou se tinham, eram poucos e com salários ínfimos), negros estavam à margem de muitas carreiras, e as famílias eram absurdamente numerosas (seis filhos por mulher, em média, em 1960!). Imaginem o suplício de uma família com seis filhos vivendo em casas com esses aluguéis enlouquecidos, sob o tacão de uma lei que se dizia “protetora”?
Os Mecanismos de Tortura do “Protecionismo”: Uma Análise Detalhada
Como funcionava esse inferno? Tomemos como exemplo a Lei 6.649/79, a Lei de Locações anterior à atual. Ela previa a correção monetária apenas pela ORTN (Obrigações Reajustáveis pelo Tesouro Nacional), um índice que, em muitos momentos, era inferior à inflação real. E, para coroar a loucura, não permitia a saída por iniciativa do locador a não ser em situações excepcionais.
Com essa aberração legal, a pergunta óbvia é: quem, em sã consciência, ofereceria imóveis para alugar? Quem aceitaria a condição de não poder tirar o locatário sem uma “falta gravíssima” (e isso depois de um processo legal de anos – alguém aqui, com um pingo de sanidade, acredita que um juiz concederia despejo em tutela de urgência em algo tão “social” como aluguel de moradia?). E, para piorar, quem aceitaria que o valor da locação seria reajustado por um índice pífio frente à inflação galopante dos anos 1980?
A resposta é óbvia: muito menos gente ofereceria imóveis para locação. Quem alugaria nessas condições, em vez de simplesmente deixar o imóvel parado, mofando? O resultado era previsível: uma queda brutal na oferta, que, por sua vez, fazia o valor do aluguel disparar para os poucos imóveis disponíveis. A “proteção” virava punição, e a “defesa do inquilino” significava menos moradias e preços exorbitantes.
O Assédio Psicológico Como Estratégia de Despejo: A Barbárie Legislativa
Do ponto de vista da família que precisava pagar aluguel, o cenário era de calamidade. Era quase impossível encontrar um imóvel decente. E se houvesse necessidade de manutenção, mesmo aquelas de responsabilidade do locatário, o atendimento era o mais precário possível. Por quê? Porque o objetivo do proprietário era fazer o locatário sair voluntariamente.
Imagine, então, o assédio psicológico que o locatário sofria. Quanto mais rápido ele saía, mais interessante para o locador, que poderia então alugar o imóvel a um novo inquilino por um valor muito mais alto, graças à inflação que corroía o dinheiro a olhos vistos. O incentivo era, perverso, causar o maior transtorno psicológico para forçar a saída. A lei, que se dizia protetora, criava um ambiente de tortura mental.
O Pré-64: A Anarquia Econômica Absoluta e o Surgimento da “Malandragem Brasileira”
Antes do regime militar, a coisa era ainda pior. Não havia sequer correção monetária, um instituto revolucionário criado (pasmem!) pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, figuras que a esquerda, em sua cegueira ideológica, sempre vilipendiou. Não só o inquilino não saía, como também não era permitido reajustar os aluguéis, e isso em um cenário de inflação galopante nos anos 1950 e 1960. Era o caos absoluto, a anarquia econômica travestida de “justiça social”.
Claro que, com o brasileiro sendo o que é, um mestre na arte de sobreviver ao próprio governo, havia outros institutos para burlar e minimizar os impactos econômicos que essas leis desumanas traziam. O famoso “por fora”, por exemplo. Pagamentos em dinheiro vivo, à margem da lei, onde o valor de fato do aluguel era o valor contratado mais o “por fora”. A informalidade e a ilegalidade floresciam onde o Estado, em sua megalomania, tentava controlar o incontrolável.
Conclusão: A Ignorância como Condenação
Pergunte-se: imaginava viver nesse inferno? Pois bem, muitos viveram. E a lição, meus caros, é dolorosa, mas crucial: o Estado, quando tenta ser onipotente e benevolente, torna-se um opressor. A crença de que a caneta do legislador pode subverter as leis da economia e da oferta e demanda é uma ilusão que nos custa caro. Custou-nos moradias, custou-nos eficiência, custou-nos sanidade.
A Lei 8.245/91, com suas imperfeições, é um lembrete de que a liberdade de mercado, a despeito das falhas intrínsecas a qualquer sistema humano, é sempre menos perversa do que a tirania da burocracia e a hipocrisia do populismo. Que a geração nova, em sua benevolência ingênua, não se esqueça das chagas abertas pela intervenção estatal excessiva. O inferno, afinal, é feito de boas intenções. E o Brasil, infelizmente, já foi um inferno de aluguéis.
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Ótima análise! Parabéns, Bruno!